CAPÍTULO 43 – O DEUS KANZEON BOSSATSU

Referi-me anteriormente à afinidade de Kanzeon sob vários aspectos. Como já afirmei, a razão pela qual Ele se tornou Kanzeon Bossatsu foi, sem dúvida, a violência e a pressão do deus Sussanoo-no-Mikoto.

Mas como ficou o trono do imperador depois da partida do deus Izunome-no-Ookami? O imperador Amaterassu, irmão mais novo de Izunome Ookami, infelizmente, sem qualquer motivo, veio a falecer repentinamente. Assim, sem outra alternativa, a imperatriz Amaterassu foi indicada para ocupar o trono. É por esse motivo que, ainda hoje, o deus Amaterassu Ookami, apesar de ser deus do Sol, é venerado como deusa.

Como já me reportei antes, Sussanoo-no-Mikoto ambicionava usurpar o poder e governar o Japão. Todavia, pela sua excessiva precipitação, não escolheu os meios para alcançar seus objetivos e implantou uma política de força. Em conseqüência, o povo ficou numa situação caótica, chegando a uma situação de total ingovernabilidade. Isso desagradou ao deus Izanagui-no-Mikoto, pai de Sussanoo-no-Mikoto, e a repreensão que este recebeu foi inevitável. O comportamento de Sussanoo-no-Mikoto deveu-se igualmente ao fato de ser ele um deus de linhagem coreana. Como posteriormente ele não se arrependeu, continuando com o mesmo comportamento, sem outra alternativa, foi decidido que seria expulso do Japão. No Kojiki (registros de histórias antigas do Japão) consta o seguinte:

Devido ao seu mau comportamento e à sua desastrosa administração, o deus Sussanoo-no-Mikoto foi repreendido pelo deus Izanagui-no-Mikoto e mandado para o Mundo Espiritual. Como sua mãe, a deusa Izanami-no-Mikoto, encontrava-se lá, ele planejou ficar com ela, em reclusão, até ser perdoado. Antes de partir para o Mundo Espiritual, foi ao Céu despedir-se de sua irmã mais velha, a deusa Amaterassu Ookami.”

Sobre isso, o Kojiki registra:

O deus Sussanoo-no-Mikoto, fazendo estremecer as montanhas e rios, tentou subir ao Céu. Ao saber disso, a deusa Amaterassu Ookami ficou deveras assustada, desconfiando que seu irmão mais novo vinha para atacá-la. Quando ele chegou ao Céu e se encontrou com a irmã, sentiu algo de anormal no comportamento dela. Disse-lhe então: ‘Parece que você, minha irmã, está suspeitando de mim, mas não tenho nenhum pensamento vil. Sou inocente e vou-lhe apresentar uma prova’ . Assim dizendo, desembainhou a espada e mergulhou-a na água do poço Manai. Nesse momento nasceram três deusas: Itikishima-Hime-no-Mikoto, Okitsu-Hime-no-Mikoto e Taguiri-Hime-no-Mikoto. Amaterassu Ookami retrucou: ‘Eu também vou lhe mostrar a pureza do meu sentimento’. Dizendo isso, tirou o colar pendurado ao peito, sacudiu-o igualmente na água. Aí nasceram cinco deuses masculinos: Ameno-Oshihomimi-no-Mikoto, Ameno-Hohi-no-Mikoto, Amatsu-Hikone-no-Mikoto, Ikutsu-Hikone-no-Mikoto e Kumano-Kussubi-no-Mikoto.”

Naturalmente, isso é uma metáfora. Na realidade, Sussanoo-no-Mikoto chamou suas três filhas e Amaterassu Ookami, seus cinco vassalos. Os dois, tendo cinco homens e três mulheres como testemunhas, tentaram firmar um compromisso. Esse compromisso tinha como ponto de referência o lago Biwa-ko, situado em Oomi, na atual província de Shiga-ken, também denominado lago Shiga-no-ko ou, como me referi acima, Ama-no-Manai. A parte leste ficaria sob o domínio da deusa Amaterassu-Oomikami, e a parte oeste, sob o domínio do deus Sussanoo-no-Mikoto. Foi firmado, assim, o compromisso que, nos termos atuais, seria um tratado de paz. Esse compromisso é conhecido pelo nome de Compromisso de Yassuga-Hara. Ainda hoje existe uma vila chamada Yassuga-hara, à margem direita do lago Biwa, o que me leva a crer que o compromisso foi firmado nesse local.

Durante um curto período, houve momentos de tranqüilidade. Contudo, o deus Sussanoo-no-Mikoto, como sempre, não conseguia manter-se em reclusão e, por esse motivo, teve sua expulsão consumada.

Vou referir-me agora à deusa Ryuuguu-no-Otohime (Princesa do Som do Palácio do Dragão), conhecida há muito por todos. Para isso, torna-se necessário retroceder um pouco no tempo.

Havia cinco irmãos, de sexo masculino e feminino, nascidos dos deuses Izanagui-no-Mikoto e Izanami-no-Mikoto. O primogênito chamava-se Izunome-Tennoo; o segundo filho, Amaterassu-Tenno; o terceiro filho, Kan-Susanoo-no-Mikoto; a primogênita, Wakahimeguimi-no-Mikoto, e a segunda filha, Hatsuwakahime-no-Mikoto.

O deus Izanagui-no-Mikoto fez primeiro Izunome-Tenno governar o Japão. Depois, deu essa incumbência ao imperador Amaterassu-Tenno e, a seguir, à esposa deste, a imperatriz Amaterassu-Koogoo. Sussanoo-no-Mikoto, desde o início, foi incumbido de governar a Coréia. Destinaram-lhe, como esposa, naturalmente, uma princesa coreana. Como ela se tornou esposa do irmão, os irmãos dele começaram a chamá-la de Otooto-Hime (Princesa do Irmão Mais Novo). Abreviando ainda mais, passaram a chamá-la de Oto-Hime (Princesa do Som). Antes, ela era chamada de Otome-Hime, talvez porque, no tempo de solteira, no nome coreano incluía, também, o ideograma arroz.

Como foi exposto anteriormente, desde que seu marido saiu numa viagem sem destino, Otooto-Hime (Princesa do Irmão Mais Novo) ou Oto-Hime (Princesa do Som) teve, naturalmente, uma vida solitária. Assim, ela retornou logo à Coréia, sua pátria, e ali construiu um palácio magnífico, onde vivia com inúmeras criadas.

Nessa época, um jovem chamado Tarô, nascido no Japão na região de Shinshu, que gostava muito de pescar, sempre ia para o alto-mar, saindo da praia situada nas imediações de Hokuriku. Certo dia ele defrontou-se com uma grande tempestade e, com muito esforço, conseguiu se salvar, chegando a uma praia da Coréia. Neste país, os japoneses eram alvo da curiosidade de todos. Por esse motivo, é lógico que Oto-Hime não podia deixar de convidá-lo para ir ao seu palácio, onde a entrada de homens era vedada.

Talvez por não suportar a solidão, Oto-Hime, que na época era como se fosse rainha, quando se encontrou com Tarô, apaixonou-se à primeira vista, por ele ser muito bonito. Não conseguindo resistir, arranjou um pretexto para que o jovem pudesse permanecer no palácio. Sua paixão por Tarô foi-se tornando cada vez mais ardente e, assim, ela ficava junto dele dia e noite. Um dia o povo tomou conhecimento disso. Como as críticas foram aumentando, a princesa viu-se forçada a romper o romance. Enchendo uma caixa com maravilhosos tesouros, Oto-Hime deu-a de presente a Tarô e providenciou que ele retornasse ao seu país. Esta é a famosa Tamate-bako (arca do tesouro). Dizem que quando Tarô abriu essa caixa, seus cabelos ficaram brancos, mas essa história deve ser invenção de alguém.

O sobrenome de Tarô, Ura-shima (ilha de trás), talvez seja uma referência à Coréia, pelo fato de ela estar situada “atrás” do Japão. Creio que esse sobrenome lhe foi colocado por um escritor de uma época posterior. Quando Oto-Hime era como se fosse a rainha da Coréia, tanto o Japão como a China foram dominados por esse país e pode-se dizer que até a parte leste da Índia estava sob influência coreana. Naturalmente, isso aconteceu porque Sussanoo-no-Mikoto, durante certo tempo, teve um poder grandioso, que se expressa pela frase “capaz de derrubar até mesmo uma ave voando”. Além do mais, a deusa Oto-Hime era uma mulher de personalidade forte, que suplantava até mesmo os homens.

Justamente na época em que encerrava sua Providência na Índia e pretendia voltar ao Japão, Kanjizai Bossatsu chegou até ao sul da China. Sabendo que no Japão ainda pairava uma atmosfera de perigo, resolveu ficar naquela região por algum tempo. Desde então, passou a ser chamado de Kanzeon. Durante Sua estada na Índia, Ele ficara contemplando o mundo de Jizai-Ten, e por isso atribuiu a Si mesmo o nome Kanjizai. Desta vez ficou contemplando o mundo de Oto-Hime, razão pela qual denominou-Se Kanzeon. Lendo-se de trás para a frente, o termo Kanzeon significa “contemplar o mundo de Oto-Hime”.

Quando Kanzeon propagou os Seus Ensinamentos aos povos do sul da China, como era a atuação de um Bossatsu de elevada virtude, os povos vizinhos, sentindo uma espécie de amor filial por Ele, procuravam-No e reuniam-se à Sua volta. Desde então, a Fé Kannon finalmente se estendeu por toda a China. Entretanto, com idade avançada e tendo concluído Sua providência, Kanzeon acabou falecendo naquele país. O fato de, ainda hoje, toda a China, isto é, a Manchúria, a Mongólia e até a região do Tibete terem uma fé inabalável em Kannon, encerra um profundo significado, sobre o qual falarei gradativamente.

É lamentável não ter restado no sul da China nenhum vestígio da passagem de Kannon. A razão disso é que aquela região foi assolada pela guerra várias vezes, o que, inevitavelmente, fez desaparecerem esses vestígios.