O recentemente falecido Bernard Shaw, personalidade mais respeitada como um gênio do que como um literato de caráter mundial, era alguém de quem eu gostava imensamente, desde jovem. Em vista disso, pretendo escrever fatos variados que guardo a seu respeito na memória.
Ao avaliarem o velho Shaw, a maior parte das pessoas afirma, quando muito, que ele era um homem sarcástico e pródigo em máximas. Sem dúvida, esta é uma de suas particularidades. Contudo, sempre lamento que o julguem tão somente por tais palavras, sem procurarem suas outras faces. Da minha ótica, jamais houve quem tenha captado com tanta perspicácia a essência das coisas e podido expressar isso com tamanha franqueza Ele enunciava aforismos concisos e extraordinariamente argutos em meio a seus ditos sarcásticos e humorísticos. Ele dizia certeiramente as coisas. Este é um traço de um excelente religioso. Tentarei relatar com brevidade o que lembro dele. Dentre suas obras há o romance O Discípulo do Diabo. Eu vi a representação teatral deste drama: muito interessante e comovente. Eis aqui o enredo. Numa pequena cidade da Inglaterra mora um pastor. Durante a ausência deste, um policial vem bater à porta de sua casa. Sua missão é levar o pastor à delegacia, em virtude de certo crime. Como o pastor não se encontra, o policial revela o caso à esposa dele. Tomada de espanto e pavor, ela não sabe o que fazer. Todavia, acha-se aí presente um jovem, chegado instantes atrás. Delinquente de notoriedade na cidadezinha, tem a alcunha de “o discípulo do Diabo” — nome que por si só já diz tudo. Pois bem, sem poder suportar a visão da esposa do religioso a tremer diante do policial, o jovem — impelido sabe-se lá por que impulsos — apresenta-se de súbito ao policial como o responsável pelo crime, dizendo-lhe que o leve preso. Sem pestanejar, já que o comportamento costumeiro do jovem só o desabona, o policial o conduz à delegacia.
A comoção provocada por “O Discípulo do Diabo”
Entrementes, o pastor retorna à sua casa. Aí, colocado a par dos acontecimentos pela mulher, sua fisionomia se transtorna, a ponto de ser nitidamente visível a sua agonia interior. É que lhe irrompeu no íntimo o sentimento de auto-recriminação perante a sua vilania de espírito, que lhe conduziu a tramar noite e dia a maneira de escapar daquela culpa. No entanto, quem se imolara pelo seu crime, expondo a própria vida, como a escarnecer daquele nefando sentimento? O próprio Discípulo do Diabo! Diante de tamanho denodo, digno mesmo de um homem santo, daquela manifestação de amor, o pastor não pôde esconder a sua vergonha. Ele, que era um apóstolo de Deus, se comportava mais vilmente que o Discípulo do Diabo. Assim, o pastor confessa seu crime à esposa e se encaminha imediatamente para a polícia, a fim de salvar o Discípulo do Diabo, prestando aí seu esclarecimento. Evidenciando-se, então, ser a sua falta de menor gravidade, ele é logo posto em liberdade, voltando à sua casa em companhia do jovem. Acho que a história terminava com o pastor a agradecer e a louvar o Discípulo do Diabo. Quando vi esta peça, fiquei vivamente impressionado, recordando-me dela até hoje.
O teatro burlesco pacifista
A seguir, tem-se a obra As Armas e o Homem, chamada também de O Soldado Chocolate. Escrita após o término da Primeira Guerra Mundial, seu enredo conta a história de um soldado que está estacionado em uma vila e que, à parte de sua missão militar, goza folgadamente o dia-a-dia, distribuindo chocolate às crianças aldeãs a quem ama. Tratando-se de uma peça do gênero burlesco e pacifista, tenho na memória que trazia ditos bem incisivos a respeito dos prós e contras da questão da guerra.
Há, outrossim, a peça O Século XX, que também se passa na Inglaterra do pós-Guerra e retrata a filosofia da época. O personagem central desta obra é um coronel do exército reformado, sujeito durão e de princípios feudais, representante da Inglaterra conservadora. Sua maneira de pensar equivaleria, no Japão, a dos adeptos remanescentes do ideário do período Tokugawa na Era Meiji. Indivíduo assaz teimoso, impõe aquilo que julga correto a todos à sua volta, colocando a sua família em apuros. Em vista disso, seu lar é verdadeiramente sombrio. Todavia, a gente da casa zomba deste cabeça-dura, pondo-lhe a língua quando ele dá de costas. De vez em quando, seu filho faz tentativas, conquanto infrutíferas, de mudar seu modo de pensar com idéias modernas. Nesse ínterim, surgem diversos problemas e, aos poucos, o velho vai amolecendo até ser completamente convencido pelo filho. Acho que a trama era essa. Como já se passaram muitos anos, porém, pode haver pontos diferentes: o esqueleto da obra era assim. Ficando por aqui na dramaturgia, passemos a alguns de seus ensaios e aforismos.
O gênio da literatura jamais igualado em franqueza
Sua opinião acerca da comédia é a seguinte. Trata-se a comédia, sem dúvida, do gênero teatral que visa ao riso. Há, todavia, um segredo para provocar o riso. Isto é nada mais, nada menos que a desilusão. Suponhamos termos à nossa frente alguém que passe trajado a rigor, senhor de um magnífico bigode e imponentemente montado num cavalo. Na cena seguinte, esse mesmo indivíduo nos surge montado, mas nu. A desilusão provoca-nos involuntariamente o riso. Assim, Shaw descerra sem hesitação a maquiagem e o ouropel da sociedade, assim como o revestimento das tradições, mostrando tudo nua e cruamente. Este é o segredo da comédia. De fato, o sarcasmo e os ditos de Shaw trazem tal técnica como núcleo. Em resumo, ele não tem papas na língua, pondo tudo a descoberto. Sua franqueza é ilimitada, o mesmo acontecendo com sua personalidade. Eu acredito que jamais houve um literato tão sincero como ele. Seu sarcasmo, pois, não é gratuito. A exposição da realidade acima é que, por si mesma, constitui um sarcasmo. Conta-se o seguinte episódio. Certa vez, Shaw se achava diante do público ao qual faria uma palestra. Repentinamente, ele disse assim: “Os senhores, certamente, não têm inteligência suficiente para poder entender o sentido do que hoje tenho a dizer.” O auditório, então, explodiu numa gargalhada. Reside nisso o seu misterioso fascínio. Em condições normais, o auditório ficaria terrivelmente enraivecido caso lhe dirigissem tamanha afronta. Acontecer, contudo, exatamente a reação contrária é a evidência do tanto que Shaw era querido do público. Há ainda este episódio. Uma escritora famosa disse-lhe que o filho nascido do casamento de alguém de um cérebro tão notável como ele com ela decerto seria uma criança inteligente. Shaw replicou-lhe, de imediato, que uma criança nascida da união de alguém com uma cabeça estranha como a dele com a dona de uma inteligência medíocre como a dela seria, antes de tudo, um inútil. Das suas máximas, a que considero a mais interessante é a que diz que o amor é aquilo imprescindível concedido por Deus para a preservação da espécie… É ou não é espirituoso? Ademais, nunca houve alguém tão confiante em si como ele. Dizem que ele sempre afirmava o seguinte. “Shakepeare é tido como o maior escritor da Inglaterra, mas, na verdade, o maior sou eu.” Ele não estava, com isso, se vangloriando ou blazonando, em especial. Estava tão apenas manifestando honestamente aquilo que pensava. Quando ditas por ele, expressões que poderiam parecer megalomaníacas não continham nenhuma malícia, sendo aceitas de bom grado. Nisto residia a sua grandeza. É possível entrever também a importância de sua existência no fato de, em idade avançada, ele ser consultado pelas autoridades inglesas sobre vários problemas surgidos no país. Trata-se de uma das grandes personalidades do século vinte.
Jornal Eiko nº 78
15 de novembro de 1950