A escrita traz a personalidade de seu autor impressa espiritualmente e esta nos influencia quando a apreciamos com constância. Nisso reside a importância da caligrafia e é por essa razão que ela só possui valor quando executada por uma grande personalidade, por um grande indivíduo. [...] Pode-se dizer que a ênfase da minha obra de salvação é a escrita.
Meishu-Sama (1882–1955) assim se pronunciou no volume sobre a arte em sua coletânea de Ensinamentos Alicerce do Paraíso, revelando-nos que o “o valor espiritual de uma escrita” é uma grandiosa obra de salvação para aqueles que a apreciam.
Desde os tempos antigos, as caligrafias antigas e as caligrafias famosas foram valorizadas no Japão não apenas como obras de arte, mas também como objeto de adoração e reverência.
Monges famosos e eminentes surgiram no Japão desde a cultura Asuka no século VI em que o budismo foi transmitido oficialmente pelas virtudes da dinastia chinesa de Kudara (663) até os séculos VII e VIII das culturas Hakuhô e Tenpyô, que receberam a influência da dinastia Tan’g. Enquanto se fazia a compilação das doutrinas budistas e se escreviam teses a respeito, despontaram exímios calígrafos entre os imperadores, nobres e monges, os quais deixaram o nome para a história.
Podemos citar entre eles o Príncipe Shôtoku (574?–622?) e os membros da família imperial, a começar pelo imperador Shômu (701–756), e no período aristocrático Heian entre os séculos IX e XII, o eminente monge Kûkai (774–835), habilidoso no manejo com qualquer tipo de pincel, Kino Tsurayuki (868–945), Onono Tôfû (894–966) e Tachibanano Hayanari (?–842). Com o advento da escrita que utiliza os fonogramas oriundos dos ideogramas, surgiram também as caligrafias como Murasaki Shikibu (973?–1014?) e Sei Shônagon (966?–1025?).
Entre os séculos XII e XIV, época do governo samurai de Kamakura, predomina a influência das religiões zen-budistas e surge o mundo das pinturas zen. O mesmo ocorre no universo da caligrafia, com a grande atuação dos mestres do zen-budismo como os Supremos Monges Nacionais, os Monges Iletrados e os Monges Nacionais, que edificaram uma época de ouro mantendo íntima relação com a cerimônia do chá. No século XV do shogunato de Muromachi, vemos a atuação do Mestre Zen Ikkyû (1394–1481), tão apreciado por Meishu-Sama. No século XVI, Senno Rikyû (1522–1591), grande estrela da cerimônia do chá da época Momoyama, era um apreciador das pinturas em nanquim a ponto de os quadros utilizados nas cerimônias do chá ficarem restritos às obras de caligrafias produzidas pelos monges zen-budistas. No século XVII do shogunato Edo, surge Ryôkan (1758–1831) entre outros, e não encontramos, assim, nenhuma pausa para citar famosos calígrafos.
Com toda essa tradição, é natural que no mundo da “caligrafia” surgissem pessoas com o afã de possuir obras famosas. Principalmente quando a “caligrafia” de algum mestre famoso virava objeto de desejo dos colecionadores, ela passava a ser disputada. Aconteciam brigas em torno a um objeto famoso:
– Passe-o para mim!
– Não!
– Então, vamos resolver com dinheiro.
– Não brinque!
Nisso, o assunto se resolvia:
– Então, vamos dividi-lo meio a meio.
Infelizmente, a obra famosa em disputa era cortada ao meio, mas novamente surgiam outras disputas:
– Eu também quero.
– Eu também.
E nisso as obras ficaram recortadas e se dispersaram. Esses pedaços receberam o nome de “fragmentos”. Em se tratando, porém, da sociedade humana, começaram a aparecer casos como o que segue. Um indivíduo dizia:
– Tenho o fragmento da obra de um famoso calígrafo e posso cedê-lo...
– Então, quero sem falta que me ceda. Como gratificação... — e assim, o negócio era fechado.
Quando, porém, o comprador estava feliz com a aquisição, acontecia de o fragmento ser falso, e isso acabava em agressão física.
Surgiu, assim, a necessidade de pessoas que reconhecessem a obra de caligrafia, atestando sua autenticidade ou falsidade. Até então, existiam nobres e monges argutos capazes de reconhecer a autenticidade de tais obras, mas, com o tempo, as pessoas passaram a procurar autoridades para autenticá-las e tornou-se necessário um caderno de originais que atendesse à autenticação.
Foi em decorrência desses fatos que se criou o caderno conhecido por tekagami. Trata-se de uma encadernação de fragmentos de obras famosas antigas. “Te”, cujo sentido literal é “mão”, representa a caligrafia a pincel, e “kagami” é “espelho”, no sentido de “registro”, significando padrão ou modelo. Para os calígrafos, ele servia de modelo no aprimoramento da arte da caligrafia, e para a autoridade em autenticações, de livro-base ou de “espelho” para a certificação. Algo para se comprovar a autenticidade, ou seja, um tipo de papel de tornassol. Dentre os inúmeros tekagami, o Museu de Belas-Artes MOA possui em seu acervo o Registro de Originais Kanbokujô, considerado Tesouro Nacional do Japão, e que apresentaremos a seguir.
O primeiro certificador do Japão foi Kohitsu Ryôsa (1572–1662). Instalou-se em Kyoto sob o título de Fuya e estudou música e reconhecimento de caligrafias antigas com o nobre Karasumaru Mitsuhiro (1579–1638) e serviu ao xogum Toyotomi Hideyoshi (1537–1598). Posteriormente, foi para Edo e recebeu o nome de Kohitsu por ter se tornado o autenticador especialista do governo militar chamado kohitsumi, “olheiro de caligrafias antigas”, e deixou certificadores da família por várias gerações. A família Kohitsu possuía três livros que serviam de base para a certificação: Moshiogusa, Minuyonotomo e Kanbokujô (todos considerados Tesouros Nacionais).
Kanbokujô, cujo significado é “castelo edificado com pincel e tinta nanquim”, reúne 311 páginas de fragmentos de caligrafias famosas antigas desde o século VIII até o século XV num caderno em forma de sanfona. A etiqueta na qual consta o título foi escrita por Karasumaru Mitsuhiro, e por isso acredita-se que foi confeccionado no início do século XVII. É composto por diversas obras como a Coletânea Daishômu, constituída pelas caligrafias do Imperador Shômu, o fragmento do Eingakyô, sutra acompanhado de desenhos; a compilação do fragmento Kôya da Coletânea de Poemas de Outrora e de Hoje; o fragmento da Coletânea de Poemas de Bai Yu-ji do registro histórico Hyakurenkyô e o fragmento de Coletâneas de Famílias Ilustres, entre outros, compilados pelo eminente, mas infeliz Sugawarano Michizane (845–903); além de sutras; papéis para composição de poemas; cartas (quase todas de amor) e pequenas anotações, sendo, a maioria, coletânea de poemas, especialmente fragmentos dos século IX ao século XII.
A certificação
Ao receber um pedido, o autenticador consultava o Registro de Originais procurando o calígrafo a ser reconhecido e colocava um sinal no fragmento. Quando conseguia reconhecer com clareza, autenticava com a gravação “caligrafia de XY”; quando restavam dúvidas, “caligrafia considerada de XY”. É por esse motivo que atualmente são encontradas, vez ou outra, a inscrição “considerada de XY”. O resultado da autenticação era escrito num cartão chamado “origami” ou “kiwamesatsu” e entregue ao solicitante. Daqui se originam os termos “com origami” e “com kiwame”. Voltando um pouco ao assunto anterior, o Registro de Originais Kanbokujô é de outra família que não a família Kohitsu e tem inscrito o nome dos certificadores em cada página de fragmento, por Ryôchû, ex-proprietário do Kanbokujô, mas, infelizmente, não é acompanhado de nenhum “kiwamesatsu”.
Durante longos anos, foi de Ryôchû, depois, pertenceu a Masuda Takashi (1848–1938), grande empresário do início do século XX e famoso colecionador de obras de arte, e, após a Segunda Guerra Mundial, entrou para o acervo desse museu. Foi classificado como Tesouro Nacional em abril de 1961.